sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Meus pés

Meus pés


Com toda razão eles doem. Eles me carregam por mais de oitenta anos!
Quando era criança tudo bem, os pés eram ágeis e leves. Aos poucos saímos das sandálias para o salto alto, dos jogos e maratonas passamos a escalar montanhas, andar na praia e dançar todos os ritmos. Por mais árdua que a caminhada fosse os pés eram os primeiros a tocar o chão, sempre prontos a ir para a escola, trabalhar ou viajar.
Acaricio meus pés, eles são certinhos, sem calosidade ou deformados. Cuido das unhas, uso creme apropriado e relaxante, faço exercícios e massagem. Mesmo assim eles já não são mais os mesmos.
Meus pés doem. A dor do esporão. Só sabe a intensidade dessa dor quem tem o mesmo problema. Não há resposta positiva a nenhum tratamento, pode acontecer em qualquer idade, mas no idoso o desconforto é maior.
Uma senhora benzeu meus pés, acreditando ou não passei a usar a magia de três sementes, em crises mais fortes tomei analgésico, comprei palmilha de silicone e quando me doem apoio em uma bengala. Já não sou eu quem escolhe os sapatos, mas sim, os pés.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

crônica

Caminhos da vida

Nos braços de minha mãe comecei meu caminho, depois os primeiros passos, incertos e travessos me levaram adiante. A principio era uma trilha modesta, ninguém havia passado por ela, pequenina eu segui na direção do sol nascente como se pudesse tocá-lo. Igual aos corajosos colonizadores quando partiram em busca de terras mais altas, assim fui eu. Cortando cipós, quebrando galhos, removendo pedras, improvisando pontes para atravessar rios, dormindo no alto das arvores, comendo frutas silvestres, bebendo água das fontes e da chuva, a passos cuidadosos eu alcancei uma estrada maior já aberta por aqueles que vieram antes de mim.

Se antes eu caminhava sozinha agora, embora fosse uma estrada cheia de buracos e lombadas, estava no meio de outras pessoas. Mesmo quando os dias eram nublados e sombrios eu guardei na minha mente a direção do sol e não me perdi. Na estrada da vida não há como parar, parar é morrer e eu estava determinada a viver.
Com o passar dos anos, saí dos atalhos para correr a maratona dos jovens.
A duras penas enfrentei o barro, os espinhos, o calor escaldante do deserto e as avalanches de neve. Se antes a estrada era reta, agora fazia curvas perigosas, enveredava por matas fechadas, subia montanhas de onde se ouvia a voz de animais ferozes, mas descia contornando vales perfumados pelas flores do campo...

Eu era forte, nunca fiquei doente, meus passos eram seguros. Mas tive momentos de tristeza e angustia, a derrota chegou bem perto de mim, caí muitas vezes. Gritei tão alto que o universo inteiro deve ter ouvido minha voz, eu queria saber onde estava Deus que havia me abandonado. Na areia da praia só pude ver minhas pegadas, onde estavam as Dele? Aos prantos senti que estava nos braços do meu Anjo da Guarda. Ao me colocar no chão eu tinha nas mãos um cajado, nele me apoiei e nunca mais caí.

Agora caminho por uma estrada asfaltada, via expressa, com direito à paradas ocasionais para um café ou, simplesmente admirar a paisagem. Minha direção é outra, vou ao encontro do por do sol, além do horizonte onde com absoluta certeza nos encontraremos. Quando iniciamos a viagem das descobertas da vida recebemos uma passagem de volta com data de validade em branco até cumprirmos nossa missão.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Flor misteriosa

Flor Misteriosa (Crônica de meu filho Xico)

Um dia, qual Drumond, eu encontrei uma linda flor meio perdida, e desvalida, no ermo da cidade. Encantei-me com sua existência, e a acolhi com o carinho que somente os agrônomos sabem fazer com as dádivas da natureza. Cultivei, tratei, reguei, nutri, iluminei aquela pérola como jamais havia procedido antes nem com meus próprios vasos. Ela cresceu, começou a brilhar, se perfumou, alegrando meu coração. O tempo passava, porém, e a minha flor, curiosamente, não se sustentava na sua plenitude, decaindo às vezes como se estivesse infectada por um vírus. Nesses momentos eu a tomava nas mãos, revigorando sua energia com minha dedicação. Certas horas eu viajava com ela para aspirar a fresca brisa dos lugares mais lindos do mundo, e ela vicejava. Mas, por incrível que pareça, ela nunca firmava seu esplendor. Enrustia sua essência, seu miolo murchava. Havia alguma coisa de errado naquela flor maravilhosa, que a impedia de medrar por completo, e eu quis ir a fundo entender do que se tratava. Com jeito fui observando, estudando um estratagema, até que um dia, disfarçado de beija-flor, voei próximo de sua intimidade e, como se portasse uma lupa especial, percebi pequenas manchas em suas pétalas, locais rodeados de minúsculos espinhos que escondiam um amargor experimentado pela ponta da minha língua de pássaro. Eu nunca imaginara tal desdouro, marcas indeléveis semelhantes àquelas que certas pessoas sofridas carregam para sempre, tornando-as azedas e de mal com a vida. Fiz de tudo ao meu alcance para livrar aquela flor das desgraças botânicas desconhecidas que andavam afetando seu viço. Mas meu esforço parecia em vão: quanto mais eu a ela me dedicava, mais ela se ofuscava, misturando seu esplendor com uma espécie de angústia floral. Nem os mais sofisticados subterfúgios de minha agronomia conseguiram funcionar. Até que desisti, e devolvi aquela flor misteriosa à sua origem.

Confesso que ando entristecido com o meu fracasso na jardinagem do amor. Torço, com compaixão, para que os anjos da natureza a estejam protegendo.

Xico,19/01/2012

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

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Noite Feliz

Eu era pequena, cinco ou seis anos. Vestidinho novo é tudo o que me lembro da minha alegria esperando pelo natal. Dezembro era o mês quando minha mãe se desdobrava na limpeza da casa como se o menino Jesus ali fosse chegar. A faxina era impecável! Nenhum sinal de poeira deveria perpetuar para o ano seguinte. Sem luzinhas ou enfeites alusivos à data, a cera era a única responsável pelo brilho do assoalho e dos móveis, O mês todo o assunto era o natal, mas a preocupação maior eram as rezas, as novenas, as idas à igreja, os batizados e casamentos. Num canto da sala ficava o presépio, tudo prontinho à espera da grande noite. Minha mãe me ensinava a semear arroz em caixinhas para fazer o verde do presépio, tudo tão simples e tão diferente!

A família reunida esperava pela meia-noite tomando vinho, comendo pão doce, frutas secas, tocando violão e cantando. As crianças iam pra cama mais cedo, escolhiam o lugar onde deixar seus sapatinhos, era preciso dormir para ser o primeiro a acordar e abrir o presente do Papai Noel.

à medida que a fantasia foi sendo manipulada pelo consumismo ela se infiltrou pra valer no mundo dos negócios. O evento natalino passou a ser um “big business” surpreendendo a economia ao redor do mundo. A indústria se especializou em todo tipo de ornamento, das bolas aos festões, das luzes que brilham e piscam aos pinheiros mais belos em harmonia com a natureza. De dentro das residências a decoração se estendeu para as ruas, avenidas e praças. Hoje as cidades se engalanam de tal forma que as estrelas parecem ter baixado na terra para acordar os homens da inércia em celebrar a vida. Você seria capaz de fechar os olhos ao luxo e à sensualidade e não mais se calar diante dos abusos, da violência e da injustiça? Refresca sua memória, faça um inventário de suas atitudes para com o próximo e a sociedade em que vive. As luzes são um convite à reflexão. Elas estão acesas para iluminar o caminho a ser seguido quando a festa acabar.

Acordar... Respirar... Sentir os cheiros... Ouvir o burburinho do dia começando é o presente de Natal que o bom velhinho deixou pra você enquanto você dormia...

sábado, 17 de dezembro de 2011

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O presente

Estou pensando em você, meu amigo secreto, ansiosamente esperando pelo meu presente. Primeiro a pesquisa, qual é sua cor preferida, seu hobby, seu interesse por arte, musica ou cultura. Decidido o presente, vem a questão da embalagem. A escolha do papel apropriado, laços, fitas, cartão, tudo para tornar o presente agradável aos olhos de quem o recebe. O momento da entrega faz parte do ritual, beijos, abraços e a torcida para o amigo dizer que era aquilo mesmo que ele queria.

Fui às compras. A principio fácil, sabia o manequim, a cor, a preferência, os desejos, mas eu precisava de algo que fizesse a diferença, que marcasse este Natal como se fosse o último. De uma à outra loja em vários shoppings e butiques, fui parar no comercio de rua e naveguei na internet numa busca incansável. Meu amigo secreto tem tudo, e tudo pode comprar, não há o que possa surpreendê-lo, e mais, ele vai rir do meu presente, fingir que gostou num gesto natalino próprio do momento.

Estava diante de um desafio ao qual eu não iria ceder. Foi visitando uma feira de artesanato que encontrei o presente perfeito ao meu amigo secreto: uma caixinha de madeira. Delicadamente esculpida com motivos que lembravam as quatro estações do ano, forrada em seda verde esperança, tinha seu interior dividido em pequenos compartimentos. Na parte superior apenas sobrescrito: 2012!

Entre goles de champanhe meu amigo rasgou o papel que envolvia o presente e se surpreendeu com uma caixinha vazia. A caixinha estava vazia porque cabia a ele colocar dentro de seus pequeninos compartimentos os projetos, os sonhos e as fantasias, as decisões e as estratégias de um bem viver em 2012.
Quando nos abraçamos tive certeza que havia acertado na escolha.

sábado, 3 de dezembro de 2011

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Dizer adeus

Fui apresentado a você no meio da noite, entre beijos, abraços, borbulhar de champanhe e o barulho de milhares de fogos ofuscando o brilho das estrelas na imensidão do céu. Você me recebeu sorrindo, cantando e dançando como se pudéssemos eternizar aquele momento. O nosso abraço foi pleno de certezas e eu, deslumbrado com sua receptividade, sem levar em conta minha falta de experiência, prometi realizar todos os seus desejos. Verdade, eu estava disposto a ir alem dos limites do meu aval de créditos pra fazer você feliz. Embriagado pelo seu olhar eu disse que você poderia me pedir tudo.

Sabíamos que estaríamos juntos por um tempo limitado e eu cumpri a maior das minhas promessas, fiquei ao seu lado todos os dias e não a abandonei mesmo quando dormia. Eu era jovem e impetuoso, desafiava o impossível, era mais veloz que o vento, venceria todas as batalhas e acalmaria a braveza dos mares. Você acreditou em mim!

Quando aceitei o convite para governar o mundo por 365 dias, não me importei em saber o que havia na bagagem que o coitado de um velho me entregou. Aquilo era passado, eu era o presente! Tinha o domínio perfeito em todos os campos da sabedoria, o meu reinado seria um marco na contagem dos séculos. No entanto, com o passar dos dias fui me inteirando da maldade que conduzia os homens, independente de raça, política e religião ao delírio da orgia e corrupção, dos vicio e das drogas, da violência e desamor. A luta inglória para fazer cumprir as regras impostas pelo próprio homem foi dizimando minhas forças.

Confesso que não dei conta da minha lista de deveres porque procurei em vão por mais pessoas iguais a você. Não perdôo a minha falha com o meio ambiente, choro junto das geleiras, dos rios e das matas, dos animais e dos pássaros a minha incapacidade de convencer a humanidade de sua própria destruição.

Nos dias que antecedem a nossa despedida eu peço que absolva as vezes que não correspondi à confiança que depositou em mim, os momentos em que a sua decepção quase nos separou, a tristeza que você escondeu de mim por ter que adiar seu sonho. Por outro lado eu quero brindar à audácia e determinação que conduziu você a vencer as turbulências do seu destino, chegando sã e salva a nossa festa de despedida. Ao apresentá-la ao meu sucessor eu fiz certeza que ele irá proporcionar a você a realização dos projetos que ficaram pendentes no meu reinado. Vou embora sem que perceba minha ausência.

Adeus, sou o Ano Velho, deixo você aos cuidados do Ano Novo.

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

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Aprender a esperar

Acordada no meio da noite, o sono acabou, quieta na cama espero pelo canto dos pássaros avisando que o dia está começando. A vida toda é um esperar sem fim...
Esperamos para nascer, ansiosos para conhecer o mundo aqui fora. Sem nenhum aprendizado damos os primeiros passos no caminho indefinido dos nossos desejos.
Muito pequena eu aprendi a esperar pelas refeições, nada nos era permitido comer antes do almoço ou jantar. Esperar pelo meu aniversário, esperar pelo Papai Noel.
Aprendi a esperar pelo fim de semana quando íamos ao circo ou ao cinema.
Depois ficou tudo igual até o dia que fui pra escola, e passei a esperar pelas férias.
A beleza e alegria de ser jovem foram maculadas pela tristeza de muitas esperas. O baile e o convite para dançar, um olhar, um aperto de mão e o beijo proibido. A espera da chuva, do sol e estar na fila para comprar ou pagar!
Quando marcamos a data para o casamento, contei meses, dias, e horas para finalmente ouvir, nós dois, somos um!
Continuei por anos e anos a esperar pelo meu marido, esperar pelos meus filhos nascerem, vê-los crescidos, formados e casados.
A vida é um eterno esperar a começar das coisas mais simples como esperar por um peixe que ignora a isca no anzol.
Ao semear flores, espero impaciente para vê-las sair da terra e mostrar suas caras, cada uma com seu jeitinho, sua elegância e sua cor. Esperei quatro anos para colher as primeiras uvas e continuo esperando para ver a glicínia florir. Mais triste é a espera de um barco voltando e um amor que demora a chegar...

Com a idade avançada já não sei mais esperar, tenho pouco tempo para longas esperas. Os projetos para o futuro são apenas rascunhos feitos nos momentos que antecedem o sono. Hoje eu espero pela morte como se fosse ao encontro de uma nova vida, sem tempo para despedidas, na mais surpreendente de todas as viagens, ao encontro de Deus.